sábado, 14 de janeiro de 2012

"Méliès revive em um Scorsese 3D", por Sérgio Rizzo

Texto escrito por Sérgio Rizzo e publicado na coluna Cinema e TV do Yahoo! Brasil em 20/12/2011:


Há filmes para adultos que são decididamente infantis, bem como filmes para crianças que também encantam os adultos. O segundo caso ganha um exemplo impecável com o mais recente longa-metragem de Martin Scorsese, “A Invenção de Hugo Cabret”, que estreou nos Estados Unidos em novembro e tem lançamento no Brasil programado para 17 de fevereiro.


Estrangulado pelas estreias de fim de ano por aqui, que incluem dois filmes dirigidos por Steven Spielberg (“Cavalo de Guerra” e “As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne”) e diversos outros candidatos a indicações para o Oscar, “Hugo” já está em circuito reduzido. Com isso, sua arrecadação nos EUA e Canadá deve bater na casa dos US$ 40 milhões – muito aquém do esperado para uma produção orçada em US$ 170 milhões.

Na sessão em que assisti ao filme, em plena segunda-feira à tarde, o público (cerca de 30 pessoas) traduzia essa carreira modesta. Por outro lado, 80% da sala foi ocupada por adultos (metade deles, ao menos, com mais de 40 anos de idade). E, coisa rara, quase todos aplaudiram ao final – sem falar no velho expediente de limpar disfarçadamente as lágrimas quando as luzes se acendem. Faz sentido: ele atende bem as expectativas de ação das crianças, mas o que atinge para valer é o coração dos marmanjos.

Baseado em livro do norte-americano Brian Selznick (lançado no Brasil pela editora SM), “A Invenção de Hugo Cabret” celebra a memória de um dos grandes pioneiros do cinema, o francês Georges Méliès (1861-1938). Quando os irmãos Lumière apresentaram o cinematógrafo ao público, em 1895, ele ganhava a vida como mágico. Impressionado pelas imagens em movimento, pensou inicialmente em incorporar o aparelho a seus truques. Depois, resolveu fazer filmes, centenas deles, e virou a primeira grande referência da fantasia no cinema.

“Viagem à Lua” (1902), baseado em romance de Julio Verne, é o filme mais popular de Méliès. Há um lugar especial para essa joia no filme de Scorsese, que tem o ator Johnny Depp como um de seus produtores (ele não integra o elenco) e cujo protagonista é um menino órfão, Hugo, interpretado pelo inglês Asa Butterfield (hoje com 14 anos, e que trabalha em teatro, TV e cinema desde os 8). Estamos em Paris, no início dos anos 1930. Hugo se esconde no relógio de uma estação ferroviária, supervisionada por um implicante veterano da I Guerra Mundial (Sacha Baron Cohen, de “Borat”) e por seu cão ameaçador.

Nos corredores comerciais da estação, funciona uma pequena loja de brinquedos administrada por um senhor de ar melancólico (Ben Kingsley, Oscar de melhor ator por “Gandhi”, e que havia trabalhado com Scorsese em “Ilha do Medo”). É Georges Méliès, que se esconde do mundo, amargurado pelo ostracismo. Essa parte da história confere com a realidade: então esquecido, Méliès passou seus últimos anos em um lugar como aquele, apoiado o tempo todo pela mulher, ex-estrela de seus filmes. Guardadas as devidas proporções, seria como encontrar Spielberg ou Francis Coppola, velhinhos, vendendo bonés dos Yankees e dos Knicks na Grand Central Station, em Nova York.

A fantasia entra em campo, no livro de Selznick e no filme de Scorsese (roteirizado por John Logan, de “Gladiador” e “O Aviador”), quando os caminhos de Hugo e de Méliès se encontram. Quem ajuda a aproximá-los é a neta do cineasta (Chloë Grace Moretz, que fez a versão norte-americana do filme de vampiros sueco “Deixe Ela Entrar”), com a mãozinha adicional da senhora Méliès (Helen McCrory). O papel de vilão cabe ao personagem de Cohen, que arrasta o bigode para uma vendedora de flores da estação (Emily Mortimer).

Para aproveitar os recursos do 3D, Scorsese recorre a seus célebres movimentos de câmera. O responsável é um de seus habituais colaboradores, o diretor de fotografia Robert Richardson (Oscar por “JFK – A Pergunta que Não Quer Calar” e “O Aviador”, e que recentemente fez “Bastardos Inglórios” e “Ilha do Medo”). A estação ferroviária se torna um deslumbrante cenário de aventuras, com duas sequências nos trilhos dos trens como a cereja do bolo de ação. E Butterfield encarna Hugo com uma mistura de doçura e peraltice que facilita a identificação com as crianças.

E o público adulto, o que ganha? Além dos ingredientes universais do pacote infantil, uma celebração não só à figura majestosa e adorável de Méliès, que a interpretação de Kingsley recria de modo sedutor, mas a todo o “primeiro cinema”. Scorsese realizou um filme usando tecnologia de ponta para lembrar que o fascínio exercido pelas imagens em movimento está relacionado, desde os primórdios, à sua capacidade de “capturar os sonhos” – algo que não necessariamente tem a ver com tecnologia de ponta, mas com o emprego criativo dos recursos à disposição.

Diversos filmes e astros das primeiras décadas de cinema aparecem em “Hugo”, desde a primeira sessão do cinematógrafo, em Paris, recriada com graça e charme. Ainda que as luzes sejam compreensivelmente lançadas sobre Méliès, o centro das atenções é a ligação mágica que as imagens da tela estabelecem com os espectadores, e o modo afetivo de guardá-las conosco, muitas vezes ao longo de toda a vida, como se pertencessem a nós.

É provável que Scorsese tenha a oportunidade de falar sobre isso nesta terça-feira, na Film Society do Lincoln Center, aqui em Nova York. Ele fará a apresentação de uma sessão comemorativa de “Caminhos Perigosos” (1973), seu terceiro longa de ficção, e que muito contribuiu, com seus “outsiders” novaiorquinos, para consolidar a sua maneira peculiar de representar o mundo. Esse posto de observação inconfundível se manifesta até mesmo em uma aventura de ar romântico como “A Invenção de Hugo Cabret”.




Sérgio Rizzo
jornalista, professor e colunista de cinema do site Yahoo! Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário