sábado, 14 de janeiro de 2012

"Letra e música", por Hélio Nascimento

Texto escrito por Hélio Nascimento e publicado na edição impressa de 16/12/2011 do Jornal do Comércio:

O musical de Eduardo Coutinho tem muitas virtudes. Uma delas é a originalidade. Ainda não tinha sido visto um filme assim, no qual a memória humana dirigida para canções que marcaram uma vida é articulada e exposta de forma a revelar vazios, anseios, sonhos e até remorsos. É óbvio que o cineasta, o realizador de Edifício Master, partiu de uma cena daquela obra: o momento em que um dos personagens homenageia Frank Sinatra. A ideia de colocar diante da câmera pessoas que associam momentos marcantes de suas vidas com determinadas canções, interpretando-as e assim rememorando episódios, funciona como elemento dramático que se expande por toda a narrativa e nunca perde o foco e o ritmo. As canções não é apenas um filme sobre como a letra e a música de uma canção podem estar associadas a uma vida. Não é só disso que o filme trata. Assim como em seus outros trabalhos, Coutinho tenta colocar na tela, através da palavra, dramas vivenciados por personagens reais. Ele é uma espécie de professor ao qual todos os diretores do cinema brasileiro deveriam prestar a máxima atenção. A palavra é o elemento essencial. Sendo assim os filmes de Coutinho trazem inúmeros temas que são exemplos vigorosos de roteiros à espera de um filme. Mas a imagem tem também sua importância. O desfile de tipos humanos diante da câmera povoa a tela de uma humanidade que nunca deveria ter sido substituída por discursos e alegorias.

Inútil discutir se este filme é melhor ou inferior aos outros que o cineasta realizou. Parece mais importante salientar que estas variações sobre uma cena de Edifício Master prolongam uma ideia. O resultado expressa claramente a posição de Coutinho diante do documentário. Este gênero, para ele, deve ser centralizado sobre experiências humanas conservadas vivas na memória dos indivíduos e transmitidas a seus semelhantes pela palavra. Se a música é um fenômeno ligado à emoção, a letra torna explícitos sentimentos os mais diversos. E quando conta com a palavra, como nas óperas, nos oratórios e nas canções, é inegável que ela tem seu público ampliado. Diz o próprio Coutinho que foram descartados depoimentos nos quais os entrevistados exibiam qualquer gênero de conhecimento técnico sobre a música. Interessava ao cineasta somente a memória revivida através das canções interpretadas. A memória, conservada através de música e palavra, era o que interessava ao diretor.

O painel concretizado na tela é expressivo e forma um quadro no qual o tema da perda e da substituição predomina, mesmo que haja uma evidente melancolia, até na forma escolhida pelo realizador para realizar as entrevistas: uma cadeira, uma cortina e a fixação da imagem do cenário vazio. Certamente uma das obras-primas de Noel Rosa parece resumir tudo, ao ser interpretada por um dos entrevistados.Aquela festa de São João, sendo relembrada, numa letra que parece a sucessão de planos cinematográficos, marca o encontro da palavra com o cinema. Não há dúvida de que Coutinho descobriu uma maneira de fazer documentário. E para isso usa de uma habilidade incomum de fazer as pessoas falarem. O indivíduo diante da câmera é o elemento mais importante. Falar para a câmera é falar para o espectador. É comunicar-se com o próximo. O cinema de Coutinho é, assim, a construção de vínculos. Procura estabelecer contatos. Esse cinema não necessita criar personagens. Eles já estão prontos para serem filmados. E se estão presentes no filme que estamos vendo, eles são também exemplos de vida e oportunidades para um cinema que tenha o ser humano como elemento central e ponto de partida. Ao realizar este filme, Coutinho talvez tenha pensado em Alain Resnais, que em On connait la chanson também procurou nas palavras do canto popular mensagens e revelações. Nada de grandiloquência no cinema de Coutinho. Simplicidade e objetividade são elementos que definem uma arte que elege o humano como matéria principal.





Hélio Nascimento,
jornalista e crítico de cinema do Jornal do Comércio.


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