quinta-feira, 3 de novembro de 2011

"Juventude", por Hélio Nascimento

Texto escrito por Hélio Nascimento e publicado na edição impressa de 28/10/2011 do Jornal do Comércio:

O paraibano Vladimir Carvalho tem se destacado no rico panorama do documentário brasileiro principalmente por ter elegido Brasília como cenário de dois de seus mais significativos trabalhos: Conterrâneos velhos de guerra e Barra 68. O primeiro centraliza o foco nos anônimos que construíram a capital e comete a ousadia de relembrar o nebuloso episódio da resistência encontrada por operários que organizaram uma greve por melhores condições de trabalho, documentário que inclui uma desmitificadora entrevista com Oscar Niemeyer. O segundo, como o título indica, reconstitui acontecimentos desenrolados na cidade num dos mais sombrios anos da história política brasileira recente, o ano do Ato Institucional Número 5, principalmente a invasão da Universidade. Seu filme mais recente, este Rock Brasília - a era de ouro, completa, portanto, uma trilogia sobre a cidade na qual vive o cineasta, também professor e animador cultural. O documentário brasileiro - é importante repetir sempre que houver oportunidade - atravessa uma excelente fase e merecia maior atenção do que aquela que vem recebendo por parte do público. E entre os realizadores do gênero não há dúvida alguma sobre a importância de Carvalho.

Assim com Martin Scorsese, que já realizou mais de um documentário sobre conjuntos musicais, entre eles o notável The last waltz, Carvalho parece interessado em mostrar que a popularidade de certo gênero musical não deve ser observada apenas de forma quantitativa, centralizada em números e interessada em superficialidades. É verdade que o diretor paga tributo ao sucesso dos grupos focalizados e por vezes se rende a algumas facilidades, mas isso deve ser creditado à simpatia que o realizador tem por aqueles que, numa época de cerceamento de liberdades fundamentais, procuraram através de letras irreverentes e inconformadas expressar inquietações e também a fazer perguntas essenciais. É importante salientar que, mesmo contando com material sobre os espetáculos dos conjuntos focalizados, o realizador optou por dar ênfase a depoimentos que reconstituíssem a trajetória daqueles jovens que vivendo em Brasília numa época difícil encontraram no palco um espaço de afirmação.

Não estamos diante, apenas, de um documentário sobre determinado fenômeno musical. Há algo mais a ser observado. A cena do tumulto no estádio Mané Garrincha, quando o descontrole da multidão impede que o espetáculo continue, é reveladora. Terá o cineasta imaginado que naquele momento os espectadores movidos por impulsos até então reprimidos se transformassem num símbolo poderoso da rebeldia diante de qualquer gênero de opressão? Talvez sim. É que em outro momento do filme, durante a entrevista da mãe de um dos músicos, a irmã reage de forma bem clara sobre os limites não apenas com o olhar, porque também com palavras revela a inconformidade diante da disciplina imposta no cenário familiar, microcosmo no qual estão sintetizadas as características de qualquer sociedade. O importante em documentários como este é fazer esta ligação com o que é dito e o que as imagens registram. A cena célebre dos motoristas de carro sendo severamente advertidos, como se estivessem diante de um pai ou de um professor irado diante da rebeldia de filhos ou alunos, reforça claramente esta ideia da repressão que sempre irá gerar uma reação igual e contrária.

Mas o filme não se limita a isso. A saga tem continuidade e se conclui de forma bela e eloquente num espetáculo que tem a cidade como cenário. É uma espécie de reencontro de uma geração com o mundo que antes lhe havia sido negado. Os símbolos da cidade funcionam como imagens de uma harmonia enfim alcançada. Certamente que a história brasileira das últimas décadas não foi apenas feita por artistas e jovens inconformados. Mas Carvalho soube ver no comportamento de uma geração a resposta a vários tipos de pressão. Isso sempre acontece, em qualquer época e em qualquer lugar. Mas merece atenção essa tentativa de colocar na tela parte do que aconteceu por aqui em anos ainda próximos.



Hélio Nascimento,
jornalista e crítico de cinema do Jornal do Comércio.

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